quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

INVASÕES

"Quando era criança não fazia idéia do que as invasões causariam em minha vida. Na verdade, quando criança eu imaginava como seria mágico um beijo, ou como os casais fazem para terem filhos. Era o máximo do ato invasivo que conseguia imaginar.

Quando crescemos as coisas vão ficando mais difíceis. Como se não bastasse a invasão de tudo de pior que temos que ver e ouvir com tantas atrocidades causadas por uma sociedade violenta, ainda existem as invasões sutis... aquelas que acontecem sempre e que nem sempre nos damos conta, a não ser quando o corpo avisa.
Invadiram-me numa cirurgia desnecessária. Com anestesia desnecessária. Com internação desnecessaria.

 Invadiram-me com inúmeras injeções que doíam demais... a toa. Jamais uma invasão me causou tanta indignação quanto essa na minha vida, de um tratamento errado com tanta medicação a toa, invadindo meu corpo todos os meses, por mãos diferentes que me causavam dores diferentes.

Invadiram-me em meu metro quadrado, quando ao caminhar na rua, tentaram tirar de mim uma pulseira de semi-jóia. Susto. Indignação. Reação. Fuga e risada da pessoa, que faz como criança que brinca com outra criança.

Invadiram-me por serviços prestados que cancelei...e que mesmo cancelando, cobraram taxas disso e daquilo, taxas estas que eu, cansada de tanta invasão, não fui nem atrás de ver o que era e pensei "melhor pagar e me livrar logo".

Invadiram-me os dentes... é preciso cuidar, e depois de tê-los todos sadios é preciso cuidar da estética, entrar nos padrões da normalidade que a nossa sociedade determina...

Invadiram-me no soro intravenoso. Quando não resolve os medicamentos orais, eis que furam nossas veias e nos injetam substancias... furam nossas peles e carnes, causam-nos dor. Mais do que isso... hoje em dia como espera-se que até os alívios e melhoras sejam rápidos, até procedimentos comuns que poderiam ser via oral, acaba sendo intravenoso.
Invadiram-me na ginecologista. Ô examezinho chato... já teve tempos de ser invadida por um médico mais atencioso, mais caprichoso, hoje não posso escolher. A médica me apalpa, fala da minha vida como se tivesse algum conhecimento dela, faz o exame com a facilidade de quem toma um copo dágua. Saio de lá com desconforto, tudo dentro da normalidade dos nossos tempos, assim como vários outros exames desse tipo.
Raio X. Esse toda vez que faço sinto invadir os meus óvulos, com suas radiações. Não tem um  exame de raio x que eu faça, que não leia aquela plaquinha de grávidas e não peça a Deus que ampare meus óvulos para que não sofram com a radiação, já que um dia ainda quero ter meu filho ou filha.
Tratamentos... invasões de medicamentos... Quando mesmo assim tudo dói, me sinto invadida na alma. Sinto saudade de uma vida que nunca tive, uma vida tranquila, onde só me abria pra Deus e meu marido, e a cura das doenças ficava por conta dos chás das curandeiras e da minha fé. Não sei onde inventei essa vida, mas sinto falta dela.
Talvez eu me encha de comida pra me invadir bastante... e assim sentir menos desconforto com as invasões de fora... "acostumar o corpo"
Com certeza eu deixei de mencionar muitas invasões... televisão que nos enfia coisas e notícias guela abaixo, políticos que nos forçam a engolí-los, pessoas estúpidas, profissionais incapacitados que encontramos no dia a dia. Engolimos o orgulho, a humilhação. Engolimos a impotência que se faz presente. Engolimos.
Engolimos comprimidos, gotinhas, cápsulas...

Talvez o meu corpo sinta dor e reclame... pra falar assim: "já está doendo o suficiente, chega de invasões."
Quando isso vai parar eu não sei. Acho que nunca. A gente é que acaba se acostumando. Será? Eu acho que sim. No meu caso, só não sei quando.”